Um livro escrito no intervalo entre português e espanhol, onde o portunhol não é defeito, mas gesto crítico; poemas que assumem a incompletude da vida migrante, transformando a angústia do pertencimento em metáfora de travessia — autobiografia que se desdobra em voz coletiva, memória de mulheres deslocadas e convite para reconhecermos o próprio sotaque como destino.
Fronteira é o lugar onde transitam as margens e limites se dissolvem entre si. A linguagem, enquanto idioma, cria um limite de comunicação com outros que usam outros códigos de fala. Quando esses limites se dissolvem, sem um transmigrar para o outro lado, temos um código de comunicação em uma fronteira, onde cada qual fala um pouco de si e um pouco do outro, (quase) todos se entendem, sem ninguém exatamente falar o idioma do outro, nem o seu.
Nesse universo de transição e fixação que a professora Jorgelina Tallei, argentina, naturalizada brasileira, radicada no país há mais de 20 anos e Professora universitária na área de Letras e Linguística, de Espanhol, na Universidade Federal da Integração Latino-Americana — UNILA, lançou na última Flip seu novo livro de poesias, Sotaque Ambulante, publicado pela editora Urutau.
A autora escreve como quem atravessa uma ponte sem nunca chegar ao outro lado. Usa a translinguagem como estratégia — português e espanhol se enlaçam, se confundem, se atritam — e desse atrito nasce uma voz que não é plenamente de nenhum lugar, mas carrega todos. Os poemas não oferecem solução: expõem a cicatriz da migração. A despedida que se repete, o instante breve de felicidade ao habitar outra terra, a incerteza diante do que não se nomeia. Recomeçar é continuar andando, sabendo que a fronteira não desaparece.
Para Bia Fonseca, que assina artigo sobre o livro no jornal Nota, “a originalidade de Sotaque Ambulante está na escrita entre línguas, criando uma voz própria que dá forma à condição de viver em trânsito. Essa identidade se materializa nos poemas que visibilizam a potência do contato entre espanhol e português, mostrando que é possível construir pontes entre os dois idiomas sem a necessidade de renunciar a nenhum deles”.
Depois da Flip, o livro segue sua rota errante. Setembro o leva a Posadas, depois a Asunción; mais adiante, Lisboa o acolhe na Livraria Snob e no Festival de Óbidos, até que, já cansado de tanto atravessar, retorna para Foz do Iguaçu e encerra aqui sua jornada. Mas não há fim, apenas uma pausa. Enquanto um livro se despede, outro começa a ser escrito. Desta vez, em cartas à mãe, em uma tentativa de falar com quem já não pode responder. O tema é o luto e a distância, essa forma secreta de morte que a migração impõe todos os dias.
Um portunhol afetivo, poético e político
O traço mais visível de Sotaque Ambulante não é o tema, mas a própria língua que falha e se recompõe. Português e espanhol não se encontram de forma harmoniosa; antes, se atritam, se dobram um sobre o outro, inventando um portunhol que parece sempre à beira do erro. Esse gesto, que poderia soar apenas estético, carrega também a recusa às fronteiras, recusa às normas rígidas que tentam nomear o que é “certo” e o que é “errado”.
Ao longo dos poemas, essa língua em trânsito se mostra incompleta, cheia de silêncios e intervalos. Mas é justamente aí que se revela: como se o sotaque ambulante fosse menos uma técnica literária e mais uma cicatriz, metáfora de quem não tem lugar fixo, de quem escreve entre uma partida e outra.
O livro não pertence só à autora. É autobiográfico e, ao mesmo tempo, coletivo. O que se lê em Jorgelina reflete a travessia de tantas mulheres que também migraram, que também perderam e recomeçaram. Cada página é um convite para que a leitora (e o leitor) reconheça sua própria fronteira íntima, o seu próprio sotaque que insiste em escapar.
Assim, o livro não responde à pergunta sobre identidade; apenas a recoloca no vazio. Porque ser é sempre atravessar.
👩🎓 Sobre a autora: Jorgelina Tallei
Nacionalidade: argentina, naturalizada brasileira
Residência: Foz do Iguaçu, há mais de 20 anos
Identidade: fronteiriça, escritora, professora, ativista social, pesquisadora
Formação:
Doutora em Educação — UFMG
Mestre em Letras — USP
Graduada em Letras — Universidade Nacional de Rosário (Argentina)
Docente: Letras e Linguística (Espanhol) na UNILA
Obras anteriores:
A língua de todos e a língua de cada um (infantil, 2022)
Poemário da fronteira (poesia, 2023)
A menina que falava o portunhol (infantil, 2024)